Ensino fundamental: por que os avanços dos anos iniciais não se repetem nos anos finais?

Uma mudança na organização da escola em meio à adolescência explica parte dessa questão. Saiba o que está sendo debatido por especialistas e fique por dentro de recomendações para tornar essa etapa mais acolhedora

Os anos iniciais do ensino fundamental apareceram no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de 2023 com bons resultados. O índice que mede a qualidade da educação no país revelou que essa etapa de ensino alcançou a meta estipulada (6), mas deixou à mostra que os anos seguintes enfrentam muitos desafios.

A universalização dos anos iniciais, ou seja, a garantia de acesso e a permanência no sistema educacional neste período que vai do 1º ao 5º ano, é quase uma realidade. De acordo com os dados divulgados pelo governo, 92,2% das matrículas para essa fase foram preenchidas. O mesmo não acontece na transição para a etapa seguinte: há uma queda de quase 10% (82,5%) em relação ao ingresso no 6º ano, primeiro dos anos finais do ensino fundamental.

“A grande questão é que a desigualdade social e econômica implica muito nas condições que as crianças e pré-adolescentes têm para permanecer na escola. Além das altas taxas de retenção, o 6º representa uma transição muito grande”, afirma Pilar Lacerda, integrante do Conselho Nacional de Educação e pesquisadora associada à DGPE/FGV (Diretoria de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas).

A transição dos anos iniciais para os anos finais do fundamental representa uma alteração na lógica estabelecida anteriormente. Se antes os estudantes tinham que se relacionar com menos professores e com outros tipos de conteúdo, nessa nova fase as circunstâncias mudam completamente.

“Quando eles saem do 5º ano e vão para o 6º, se deparam com uma escola que desconhece essa idade – eles ainda são crianças e pré-adolescentes – e são colocados em uma escola que tem muitas disciplinas, muitos professores, o que provoca um trauma, principalmente em quem não tem uma trajetória escolar tranquila”, pontua a educadora.

Números de reprovação crescem

As taxas de insucesso – que correspondem à retenção e ao abandono – entre estudantes que saem do 5º ano e ingressam no 6º são altas. Na rede pública, esses números são ainda mais alarmantes. Os dados saem de 6,2% para 13,8%.

Pilar avalia, contudo, que ao tratar sobre retenção no Brasil, o que está sendo discutido é uma reprovação que não tem relação com a garantia da aprendizagem. Ela nomeia a ação como algo na maioria das vezes punitivo para o estudante.

“Quando se pergunta por que o aluno está sendo reprovado, a resposta é porque ele não aprendeu, mas grande parte das escolas não sabe responder o porquê de ele não ter aprendido”, destaca.

A pesquisadora argumenta que não se trata de proibir a reprovação, mas de criar mecanismos avaliativos que sejam mais qualitativos e menos quantitativos, algo que também foi apontado por especialistas na reportagem publicada sobre os resultados do ensino médio

Um período de muitas mudanças 

Os fatores que levam um estudante a abandonar ou não ir bem nos estudos são múltiplos, abrangendo desde problemas de aprendizagem até questões socioemocionais ou familiares. A permanência na escola pode ser determinada por uma ou várias dessas dimensões.

Tereza Farias, coordenadora geral de ensino fundamental da DPDI (Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica), órgão ligado à Secretaria de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação), afirma que esse momento de transição é complexo porque é quando o estudante está vivendo um boom de desenvolvimento.

“É uma mudança na dimensão humana – com a puberdade e a pré-adolescência – muito casada com esse momento em que ele experimenta uma nova complexidade de organização da escola, com múltiplos professores e cada um com uma metodologia diferente”, afirma.

Tanto Pilar quanto Tereza avaliam que um caminho necessário é planejar estratégias de acolhimento desses estudantes que vivenciam esses diferentes tipos de transição. “Pensar em transições que apoiem e acolham esse estudante é uma estratégia que tende a minimizar um pouco os efeitos dessa irregularidade nas trajetórias estudantis”, destaca Tereza.

A coordenadora lembra que o MEC atualmente trabalha em um eixo focado em apoio às transições escolares dentro do Escola das Adolescências, programa de fortalecimento para os anos finais do ensino fundamental promovido por diferentes instâncias de governo (nacional, estaduais e municipais).

De acordo com o site do projeto, o objetivo central é criar uma proposta para essa fase da educação que “se conecte com as diversas formas de viver a adolescência no Brasil, promova um espaço acolhedor e impulsione a qualidade social da educação, melhorando o acesso, o progresso e o desenvolvimento integral dos estudantes”.

A ideia é oferecer apoio técnico-pedagógico e financeiro, além de produzir e divulgar guias temáticos e incentivos financeiros com base em critérios socioeconômicos e étnico-raciais.

Perda de vínculos 

Além de encontrar um outro tipo de escola, estudantes que chegam ao 6º ano vivenciam quebra de vínculos. A primeira delas é em relação ao corpo docente, com muito mais professores e disciplinas do que na etapa anterior.

“Há uma múltipla complexidade causal que leva o estudante a experimentar essa irregularidade nos anos finais. A gente precisa olhar muito de perto para o acompanhamento das equipes escolares na orientação desses estudantes para o gerenciamento das rotinas de estudos deles”, destaca Tereza.

Ela também destaca que esse acompanhamento deve englobar a recomposição de aprendizagens não consolidadas no final dos anos iniciais, especialmente nos 4º e 5º anos. “Se não conseguirmos incluir e desenvolver essas estratégias, a tendência é que esse estudante passe por um ciclo de reprovação, acabe se ausentando da escola por alguns anos e voltando tardiamente, em um processo que temos visto de juvenilização da EJA (Educação de Jovens e Adultos)“, destaca Tereza.

“A gente percebe que a formação de vínculos para a própria constituição das identidades que eles passam a experimentar neste momento é muito crucial”, acrescenta a coordenadora. É nessa fase que os estudantes começam a formar a própria subjetividade, quando passam a ter mais voz e alcançar mais protagonismo no mundo.

Preparação e olhar atento para a matemática

O Ideb utiliza informações do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) para compor seu relatório, observando dados de proficiência em língua portuguesa e matemática. Tereza Farias ressaltou que uma das preocupações para essa fase é a aprendizagem da matemática, que, apesar de apresentar um crescimento em relação aos anos anteriores, é um aumento muito sutil. A proficiência média de matemática no 9º ano em 2021 era de 256,3 ante 257, 1 em 2023 de acordo com o Saeb.

“Nós não podemos perder o aprendizado que conseguimos nas últimas edições, que já era muito baixo, muito distante do que consideramos adequado”, afirma.

A pasta que Tereza coordena desenvolve agora um programa focado em clubes de letramento matemático. O processo já está em andamento. As redes estaduais já fizeram uma primeira indicação de professores que servirão como referência na área e vão colaborar com a elaboração de formações continuadas em matemática, a fim de fortalecer o ensino desse componente nos anos finais.

Semelhante ao realizado com adolescentes, o MEC também fará uma semana de escuta com professores de matemática de todo o Brasil para mapear desafios e como lidam com as realidades no chão da escola. Esse material servirá de apoio para a construção de políticas voltadas para essa área. A escuta com professores deve ocorrer em outubro deste ano.

Problemas na formação 

Um outro desafio encontrado nos anos finais do ensino fundamental está diretamente relacionado à formação docente. Há uma disparidade em relação ao que professores se formaram para ensinar e o que de fato lecionam dentro da sala de aula. É comum que muitos educadores deem aulas de disciplinas que não fizeram parte da sua graduação e isso acarreta problemas de aprendizagem no ensino fundamental.

“Investir de maneira muito responsável e séria na formação dos professores é essencial, inclusive para sair desse lugar que estamos em relação à aprendizagem e nos próximos cenários de Saeb e Ideb, a gente ter um retrato um pouco melhor de aprendizagem garantidas para os estudantes”, destaca Tereza.

Pilar argumenta que tanto para professores dos anos iniciais, finais e até mesmo para o ensino médio, a formação docente ainda é muito descolada da realidade. “É necessário que a teoria embase a prática, mas que ambos caminhem juntos”, diz.

“Temos que pensar em uma formação que traga o que o que existe hoje de novidade, de inovação, e a gente tem que ter coragem para romper esse modelo de escola tão rígido, hierarquizado que gera um afastamento do estudante”, argumenta ela.

A educadora ressalta que não se deve ignorar as desigualdades que atravessam a vida dos estudantes. Os resultados do Ideb 2023 também mostraram que a média de escolas com alunos mais pobres traz algo equivalente a quatro anos de diferença nas aprendizagens quando comparadas com escolas mais ricas. Reportagem do jornal Folha de S. Paulo cruzou dados das duas últimas edições do levantamento, mostrando essa relação.

“Antes de qualquer coisa, temos que pensar em distribuição de renda. Precisamos diminuir essa desigualdade brasileira, porque as crianças não têm condições iguais para aprender. As infâncias pobres são invisibilizadas. Se as políticas públicas não olham para isso, a gente fica pensando que o problema está só dentro da escola e não está”, conclui.

Fonte: https://porvir.org/ensino-fundamental-por-que-os-avancos-dos-anos-iniciais-nao-se-repetem-nos-anos-finais/?utm_source=Porvir&utm_campaign=7625519e48-Newsletter_24.8.24_Outros%2FWings&utm_medium=email&utm_term=0_9ba572b4f0-81ceadb1c3-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

19 de setembro de 2024
Ensino fundamental: por que os avanços dos anos iniciais não se repetem nos anos finais?
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