Lições para promover uma revolução na educação pública brasileira

Sobral, no Ceará, é um exemplo estudado por outros prefeitos de como uma cidade salta do final do ranking nacional do ensino básico para os primeiros lugares

Erivalda Santana Gabriel, de 53 anos, estudou só até o segundo ano do primário, mas não precisa saber ler relatórios detalhados, cheios de percentagens e gráficos coloridos, para saber o quanto a educação melhorou em Sobral, no Ceará. A escola pública onde estuda seu filho Adleyn, de 13 anos, guarda pouca semelhança com a que ela própria frequentou, ou mesmo com a que sua filha mais velha, Alana María, de 31, conheceu há duas décadas. “Ah, melhorou muito, a merenda é boa, as coordenadoras [pedagógicas] são gente boa, e o diretor…. É maravilhoso!”, exclama Santana, pouco antes de começar seu expediente como faxineira em um hotel.

O entusiasmo dela com o diretor se deve a um gesto simples, mas poderoso: “Quando um aluno falta, ele manda um WhatsApp perguntando que por que não foi à aula e para lembrar que, se estiver doente, precisa levar atestado”. Após três dias de ausência, uma assistente social bate na porta de casa. O absentismo é um dos muitos males que afligem a escola pública no Brasil.

O primeiro grande feito de Sobral foi que, ao terminar o primeiro, com seis ou sete anos, todos os meninos e meninas sabem ler e escrever, independentemente de gênero, raça e origem social. Se em 2001 os alunos analfabetos eram metade do total, em poucos anos esse índice caiu, e hoje é zero. E isso, num Brasil tão desigual, é um triunfo maiúsculo. Em poucos anos, este município que tinha um dos piores resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) se colocou na liderança desse ranking nacional de referência.

Algo tão básico representa uma vitória porque a educação elementar atualmente, de fato, já chegou aos mais remotos grotões do país, incluídas aldeias indígenas na Amazônia, mas sua qualidade deixa muitíssimo a desejar. E a pandemia agravou males que eram endêmicos. Três em cada quatro alunos em idade de serem alfabetizados não conseguem ler nove palavras em um minuto, segundo uma recente pesquisa da Fundação Lemann. Nove palavras em um minuto, esse é o calibre do desafio antes de começar sequer a abordar as graves consequências da desigualdade que atravanca o avanço dos indivíduos negros desde que pisam no colégio.

A pandemia manteve os alunos de Sobral quase um ano longe das salas de aula. Inicialmente, recebiam materiais pelo WhatsApp, ou impresso no caso dos que não tinham celular nem Internet. Depois, os professores desembarcaram no YouTube, mas também saíram em busca de alunos que não voltaram às aulas.

Marta Cristina Pereira viajou nesta semana 700 quilômetros de Pernambuco até Sobral em busca de inspiração e esperança. Secretária de Educação de Serra Talhada (87.000 habitantes), na quinta-feira passada ela compartilhava suas inquietações com vários colegas em uma das sessões da inauguração do Centro Lemann de Liderança para a Equidade na Educação criado pela fundação homônima, à qual este jornal foi convidado. “Ainda não conseguimos romper as barreiras políticas. Minha sensação é de que nadamos, nadamos e morremos na praia. Venho com a esperança de que minha prefeita fique tocada, porque, se não reagir, podemos retroceder o pouco que avançamos”, afirmou.

O objetivo é atrair e formar prefeitos e gestores educacionais para que possam tirar lições da experiência de Sobral e adaptá-las às suas necessidades. Um dos nós que impedem o avanço é a tradição de que os diretores de escola sejam indicados por vereadores em função de interesses políticos. A enraizada troca de favores. Uma medida que neste caso é legal e abre as portas a deixar algo tão decisivo como o futuro de alunos nas mãos de pessoas analfabetas. Por isso, a revolução de Sobral começou com medidas impopulares: demissão dos funcionários que não passaram em provas técnicas, centralização das escolas e fim da nomeação a dedo de diretores e coordenadores pedagógicos.

A fórmula combina vontade política, perseverança, gasto bem feito, incentivos ao magistério, avaliação dos resultados e, em função deles, adaptações às circunstâncias variáveis, explica Veveu Arruda, professor que impulsionou a revolução quando foi prefeito, na década passada. O caminho é longo, mas se pode começar com algo simples, salienta, como dar aula nos 200 dias e 800 horas anuais que o calendário estipula. “Somos o país com menos horas letivas no mundo, e nem sequer são bem contadas”, queixa-se. Mas esse monumental fracasso coletivo tem mais ingredientes: “Tudo é motivo para não ter aula: se chove, se não chove, se é o aniversário do diretor, se morreu alguém….”, enumera, desesperado.

No Brasil, a escola pública tem má qualidade e pior reputação. Tanto é que, quando uma família prospera um pouco, a primeira coisa que costuma fazer é matricular os filhos num colégio privado. E, num reflexo da brutal desigualdade que corrói o país mais rico da América Latina, enquanto o ensino público obrigatório (dos 4 aos 17 anos) é lamentável, as universidades federais são tão boas que a concorrência para entrar é feroz. É o serviço público que os privilegiados mais apreciam.

Como se fosse pouco, a sala de aula amplia as enormes fissuras que esquartejam a sociedade brasileira: “A escola, que deveria reduzir as diferenças, na verdade as potencializa”, explica Anna Penido, diretora da recém-inaugurada instituição, que inclui um ramo de pesquisa e avaliação. Estudos demonstram que alunos negros e pobres até hoje aprendem menos que seus colegas, deixam mais os estudos, e as escolas onde são maioria têm professores com formação pior. Um círculo vicioso. O mantra de Penido é que nenhuma criança fique para trás.

A estratégia de fazer o diretor —ou, se possível, a própria prefeita ou prefeito— telefonar para a casa do aluno faltoso transmite à sua família, com poucas palavras, a noção de que a educação é algo muito importante. Muitos deles sem dúvida teriam desejado poder acabar a escola e sonhar com a universidade.

Também uma prefeitura como a de Mata de São João, município baiano de 47.000 habitantes que acaba de implantar um ambicioso sistema de reconhecimento facial para controlar os alunos, enviou representantes a Sobral atrás de dicas para aprofundar a mudança. “Nosso maior problema é a falta de líderes”, diz o secretário de Educação, Alex Carvalho, aos seus homólogos. O prefeito da Barbalha (Ceará), Guilherme Saraiva, busca esclarecer dúvidas técnicas sobre a transformação e deixa entrever o que considera ser o ingrediente-chave da revolução sobralense: “Acho que tiveram sucesso porque os governos tiveram continuidade”. A cidade brasileira que se orgulha de ser a capital educativa do Brasil é também o berço de um desses clãs familiares que, a partir de cidades e regiões afastadas dos centros de poder, produzem prefeitos, governadores, senadores e até candidatos presidenciais. Neste caso, os Gomes, cujo líder, Ciro Gomes (PDT), ficou terceiro nas eleições vencidas por Jair Bolsonaro em 2018.

Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-12-13/licoes-para-promover-uma-revolucao-na-educacao-publica-brasileira.html

17 de janeiro de 2022
Lições para promover uma revolução na educação pública brasileira
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