Chegar à universidade pode significar uma mudança completa na vida de muitas pessoas. Em 2024, 38,9% dos estudantes que ingressaram nos cursos de licenciatura do país eram os primeiros de suas famílias a chegar ao ensino superior, informa o Mapa do Ensino Superior do Brasil, do Instituto Semesp.
Para muitos desses estudantes, a universidade não é apenas um espaço de aprendizado técnico, mas também de transformação pessoal e construção da identidade profissional. A trajetória do professor também é marcada pela formação continuada e experiências desenvolvidas ao longo da vida, em especial no que se refere às rápidas transformações tecnológicas que impactam a educação.
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Os assuntos estiveram no centro dos debates durante a Bett Brasil 2024, a maior feira de inovação e tecnologia educacional da América Latina, realizada em São Paulo entre os dias 28 de abril e 1º de maio;
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Nos painéis do segundo e terceiro dias do evento, especialistas, gestores e professores discutiram o papel das licenciaturas e da tecnologia na formação de educadores mais preparados para lidar com as mudanças constantes da escola. Sem perder de vista os vínculos humanos.
Sob o tema “A formação de professores nas licenciaturas e o distanciamento do cotidiano escolar”, Diego Moreira, professor e secretário de Educação de Poá (SP), destacou a importância de reconhecer as experiências da trajetória profissional. “A identidade não é fixa, nem inata, é construída ao longo dos processos da vida. Falar ‘sou professor’ é algo construído. Onde começa essa identidade? Na universidade, não depois”, destacou.
Diego chama atenção para a importância de valorizar o processo de “tornar-se professor”. Segundo ele, o educador está se formando antes mesmo de chegar à sala de aula a partir de duas dimensões: uma subjetiva e, outra, social. O aspecto subjetivo diz respeito a quem a pessoa é individualmente. Já no campo social, trata-se da construção da imagem de professor, do que a sociedade entende como fazer parte dessa profissão.
“Essa identidade é marcada ao longo do tempo – do tempo político, econômico e cultural. Toda vez que a gente diz que um professor tem que ter um comportamento exemplar, estamos falando mais da identidade do que do ofício”, diz. Para ele, querer que todos sejam como uma “professora Helena” – personagem da telenovela Carrossel – é também retirar dessas pessoas outros elementos de conflitos e personalidade que as humaniza.
Apesar de ressaltar bons exemplos de cursos a distância na área, Diego pontua a relevância do presencial e da vida no campus universitário, principalmente durante a construção da identidade professoral. “A EAD traz problemáticas identitárias. Precisamos olhar e reconhecer que [a modalidade] traz questões de identidade para o exercício da profissão”, pondera.
De acordo com os primeiros números divulgados pelo Mapa do Ensino Superior 2025, os cursos de pedagogia na modalidade EAD seguem na liderança no número de matrículas. Entre 2019 e 2023, 504.933 pessoas se formaram nessa modalidade, ante 196.692 que fizeram o curso presencial. Outros cursos de licenciatura também apareceram entre os com maior número de matrículas no período noturno.
Mesmo com a diversidade de áreas dentro das licenciaturas, no ano passado quase metade dos estudantes optou pelo curso de pedagogia: 49,2% das matrículas, o equivalente a cerca de 822 mil alunos.
O dado evidencia a concentração de futuros profissionais da educação em uma única formação, e, ao mesmo tempo, sinaliza possíveis lacunas na preparação de professores para disciplinas específicas, como química, física e biologia, destacam os pesquisadores do Semesp.
Biblioteca virtual |
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Durante a sessão “O papel da gestão educacional na valorização do professor”, pontua que a formação está entre os três pilares de valorização da profissão docente. “A formação é um espaço real que garante ao professor três princípios básicos do seu trabalho: a escuta, o crescimento e a própria valorização. É onde professores são ouvidos, não no sentido de lamentar, mas ouvidos nas suas necessidades formativas e naquilo que é desafio ainda na prática docente”, afirma Elias Antônio Democh, professor formador da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia (GO).
A escuta ativa, portanto, faz parte de um caminho de valorização da carreira. Elias destaca ainda que cada professor traz seu próprio jeito para a sala de aula, incorporando “um pouco da própria história”. Isso vai além da técnica e do conhecimento teórico.
Elementos estes que, de acordo com Diego, são fundamentais para a valorização da profissão. Como comparação, ele destaca que dificilmente um cirurgião será questionado sobre como deve fazer uma intervenção cirúrgica, mas isso acontece com frequência com professores.
O que pode explicar esse fenômeno, em partes, é o distanciamento que as licenciaturas têm da sociedade. “Nós acabamos perdendo a condição de saber explicar a razão da nossa prática”, comenta Diego.
Embora isso seja um debate difícil em todas as profissões, na educação é ainda mais delicado, porque se confunde o que é o conhecimento com a técnica de dar aula. diz o secretário de Educação de Poá. “Um bom advogado tem que ser um bom escritor, mas porque ele é bom escritor, ele sabe ensinar a língua portuguesa?”, questiona. “A técnica do ensino é de autonomia do professor e a gente tem que recuperar isso, ou seja, não é qualquer um que tem um diploma que vai lá e dá aula.”
Além das discussões sobre identidade e reconhecimento profissional, outro tema que emergiu nas mesas de debate da Bett Brasil foi o impacto da tecnologia, especialmente da inteligência artificial, na rotina e nas exigências da prática pedagógica.
A presença cada vez mais constante de ferramentas digitais no ambiente escolar tem transformado o papel do professor. Embora a IA seja frequentemente apresentada como facilitadora de tarefas do dia a dia, ela também impõe novas demandas à formação docente.
Para lidar de forma crítica e eficaz com essas tecnologias, os educadores precisam desenvolver competências específicas, que vão além do domínio técnico, como o Porvir mostra no e-book “Guia rápido para a sala de aula”.
George Stein, pesquisador em tecnologias aplicadas à educação, reforça essa ideia ao afirmar que, diante da crescente presença da inteligência artificial nas escolas, as competências humanas ganham ainda mais importância. “A grande competência do professor é a interface humana”, afirmou durante a atividade “Competências docentes na era da IAGen: desafios e oportunidades para a formação continuada”.
Segundo ele, com ou sem tecnologia, há cinco aspectos que permanecem essenciais à prática em sala de aula:
Reconhecer o território: Identificar e atuar sobre o contexto da situação de aprendizagem. O ambiente da sala de aula, a realidade dos alunos e a situação específica influenciam a aprendizagem.
Olhar para o estudante: Entender que a aprendizagem acontece dentro de cada um, mexendo com o corpo e as emoções, e que cada pessoa aprende de um jeito diferente.
Incluir tecnologia de forma crítica: Vincular a inteligência artificial aos objetivos claros de aprendizagem. A tecnologia deve servir a um propósito pedagógico definido, levando o aprendiz do “ponto A para o ponto B”.
Explicitar as limitações da IA generativa: É importante que o docente reconheça e ensine seus estudantes a perceber as limitações dessa tecnologia, destacando que ela não é uma solução completa.
Valorizar o dia a dia: Valorizar e integrar práticas que promovam o desenvolvimento humano para além do que a IA pode oferecer.
George também alerta para a velocidade com que a IA tem sido incorporada, tanto por professores quanto por alunos, enquanto as instituições ainda buscam formas de regulamentar esse uso. Ele chama atenção para o risco de soluções tecnológicas serem guiadas mais por interesses comerciais do que por objetivos educacionais. “O desafio é desenvolver uma competência mediadora que dá conta de integrar os processos de ensino e de aprendizado no contexto tecnológico atual”, sugere.
Para Diego Moreira, o uso de ferramentas como a IA pode ser valioso na trajetória docente, mas deve vir depois da consolidação de uma base sólida de conhecimentos. “Como vou falar para um professor usar uma ferramenta de robótica se ele está com dificuldade em frações? É mais ou menos isso que a gente vive”, conclui.