O apagão docente limita a maior parte da população até mesmo a sonhar com novos futuros

O apagão docente é caracterizado pela diferença existente entre o número de pessoas interessadas em seguir carreira na docência, sobretudo de educação básica, e o número de profissionais que estão se aposentando. A RBMC (Rede Brasileira de Mulheres Cientistas) e as pessoas pesquisadoras do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde resolveram ocupar esse espaço da Nexo para provocar debates e reflexões sobre o tema. A provocação compartilhada hoje é: como as políticas de inclusão têm sido afetadas pelo apagão docente?

O apagão docente não é mais um risco: é uma realidade que ameaça o desenvolvimento brasileiro nas dimensões econômica, social e sustentável. Conforme pesquisa desenvolvida por Gatti e Siqueira (2019), a licenciatura não é opção de carreira para estudantes de classe média, nem de classe média alta, ambos impactados pelas representações de falta de prestígio social, baixos salários e falta de estrutura dos espaços escolares.

Nas camadas sociais mais vulnerabilizadas, as licenciaturas são opção e nesse contexto – estudantes com lacunas em seus processos de aprendizagem, ao estudarem disciplinas para a docência, lidam com a barreira da falta de “requisitos básicos”, justamente pela falta de docentes que vivenciaram na educação básica em suas escolas, sobretudo em territórios vulnerabilizados. Ou seja, há um ciclo de não efetividade do atendimento educacional que se perpetua e também está implícito no cenário atual. E quais condições são necessárias para o enfrentamento desta situação? Tornar a carreira mais atrativa e com condições para permanência, além do fortalecimento dos cursos de licenciatura? Sem dúvida, mas na esteira do debate ainda encontramos mais uma questão que tem dificultado que as políticas públicas educacionais encontrem eco nos espaços escolares: como as pessoas que precisam de acolhimentos e metodologias específicas para progressão nos estudos são impactadas pelo apagão docente e quais caminhos estão sendo propostos para superar essa fragilidade?

O que provoca mais impacto, nesse fenômeno que está percebido pelas pesquisas, é como ele contribui ainda mais, para dificultar o acesso digno de quem mais precisa: a periferia e suas populações minorizadas por questões de raça, classe e gênero, que por sua vez, incluem PCD (pessoas com deficiência). É fácil imaginar o cenário assustador que reside nesse processo, afinal os poucos professores que, seguem em exercício profissional, darão preferência por cargas horárias mais dignas, bem como salários mais compatíveis, tudo que aponta para a rede privada, uma vez que se observa o sucateamento da educação pública. Dados da Diretoria Nacional de Políticas Públicas de Educação Básica revelam que 25% das escolas públicas brasileiras estão com infraestrutura na UTI.

No ano de 2022, a pesquisa estatística realizada pela “PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios): Pessoas com Deficiência 2022”, informou que o Brasil possui 18,6 milhões de Pessoas com Deficiência. Esse número percentual revela ainda, em torno de 8,9% da população brasileira na faixa etária de 2 anos ou mais. Dentre esses milhões de pessoas: 10,7 milhões são mulheres, e em termos raciais, 9,5% se declaram pretas, 8,9% se declaram pardos, e 8,7% se declaram brancos.

O diálogo com os dados produzidos pela PNAD, não se encerra nesses percentuais: em relação a taxa de escolaridade dessas pessoas, o percentual gira em torno de 63,3% de pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto, e somente 11,1% tinha o ensino fundamental ou médio completo, o que infere nos percentuais de analfabetismo que giram em torno de 19,5%, enquanto para as pessoas sem deficiência giram em torno de 4,1%.

Conforme pesquisa desenvolvida por Gatti e Siqueira (2019), a licenciatura não é opção de carreira para estudantes de classe média, nem de classe média alta, ambos impactados pelas representações de falta de prestígio social, baixos salários e falta de estrutura dos espaços escolares

Esses dados que demonstram os desníveis em discussões sobre inclusão, nos mais diferentes recortes de expressões interseccionais, produzem o distanciamento cada vez mais real da escola enquanto um ambiente que possibilita o desenvolvimento de pessoas transformadas para transformar o mundo, como nos ensinou Paulo Freire, não obstante o que apontava a escritora Carolina Maria de Jesus na década 1960: “[…] o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (Jesus, 2019, p. 23). O apagão docente que apaga não apenas a construção consciente de educadores apaga e exclui a possibilidade de se pensar na inclusão social de pessoas com deficiência, pessoas negras, pessoas LGBTQIAP+ e outras populações afetadas pelo sistema colonial e reajustado pelo neoliberalismo no Brasil e que não acessam as instâncias de decisão do país.

Trata-se de um projeto para apagar todas aquelas figuras entendidas como imperfeitas em uma sociedade que preza pelo sucesso individual e perverso com o outro. Já dizia Halberstam (2020) que o fracasso pela sociedade capitalista e neoliberal é um projeto de silenciamento de tudo aquilo que fugir às normatizações construídas pelo cisheteropatriarcado burguês, reflexão que só é possível construir ao dialogar com as populações que sofrem com esse apagão, e como bem sabemos essas populações têm cor, lugar na estrutura social e gênero. O diálogo agora seria o contato com a baixa teoria, nos lugares mais subversivos e nos becos que constituem essas vivências, afinal sabendo-se que não há política de incentivo, porque não há interesse desse sistema em mudar o caos premeditado, é fundamental termos dados de impacto de quem é vitimizado para que se delineiam políticas públicas.

O apagão docente limita a maior parte da população até mesmo a sonhar com novos futuros; sabemos que sem conhecimento e acesso, além de fadados à estagnação, segue-se não tendo o mínimo para galgar novos lugares e futuros. Do que adianta o acesso à educação, garantido por lei, se a lei não puder ser cumprida, ou seja, se faltar o ator que media a transformação: o PROFESSOR? Não estamos aqui falando mais das estatísticas, e sim anunciando uma tragédia social. O que faremos?

BIBLIOGRAFIA
Gatti, Bernadete et al. Professores do Brasil: novos cenários de formação. UNESCO. 2019.

Hilário, Rosangela Aparecida; Faria, Wendel Fiori; De Fátima Gavioli, Aparecida. O Blackout Docente: Faltam Professores Ou Faltam Pessoas Interessadas Na Docência Na Amazônia Ocidental?. Akrópolis- Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, v. 27, n. 2, 2019.

PNAD. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística…

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9 de maio de 2024
O apagão docente limita a maior parte da população até mesmo a sonhar com novos futuros
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